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domingo, 19 de setembro de 2010

Cinco sentidos (Helena Barreto)




O toque dos dedos chegou tímido, experimentando, temendo reações, identificando limites. A pele suave do quadril era morena, quente. A resposta foi rápida, quase imediata. Sim, Helena gostava do toque daqueles dedos. Seu meio sorriso fez com que Mônica começasse a deslizar a mão pelas suas costas, descendo
ate o limite imposto pelo decote. As duas se olhavam como se estivessem sozinhas no universo - e, como não estavam, eram alvo da curiosidade ao redor.



Há muito as duas sabiam, se esperavam. Para as duas aquela cena já tinhasido imaginada, sonhada e desejada. Naquele momento, nenhuma das duas sabia como chegar onde sabiam que queriam ir - colar seus corpos, molhar seus sexos, acariciar as coxas, peitos, trocar línguas, salivas, gozos. Por enquanto, só os olhares denunciavam tanto desejo. Só daqui a pouco elas
viriam a provar o gosto da outra. Embora prenunciasse um temporal, o sexo foi suave, a sofreguidão da espera se transformou em tranqüilidade. E as duas aproveitaram cada palmo daqueles corpos, cada gota daquele gozo que as uniu.



Mônica sabia exatamente o que queria, enquanto Helena saboreava as surpresas da sua primeira vez com uma mulher. Adivinhara seu prazer com Mônica - a boca passeava pelos seios pequenos e duros, as mãos puxavam-lhe os quadris em movimentos firmes, e ela gozava com a coxa de Mônica no meio das suas pernas, pressionando seu sexo e proporcionando um prazer inédito, inesquecível. Mas isso ela só descobriria anos depois. Agora, ela so queria continuar gozando e fazer Mônica gozar. Tudo nela lhe dava prazer - o toque da pele o cheiro do sexo, o gosto do gozo, o som dos seus gemidos, a visão do seu corpo perfeito.



Anos depois, lembrando daquela noite, perceberia que experimentara prazer pelos cinco sentidos. Foi quando sentir se tornou um privilegio que ela se lembrou daquela experiencia de ter os cinco sentidos ativados, vivos - sim havia existido um momento na cama com Mônica em que gozara pelos cinco sentidos.



Agora, sozinha com suas memorias, desejava aquele sexo. Mas desejava sentir aquele prazer ao mesmo tempo intenso e ingênuo, pleno de insuficiencias.


Sim, faltava um pau lhe cortando a boceta. E era o prazer desta falta que fazia do sexo com Mônica tão dilacerante. Dilaceradas por um pau que não existe nem penetra, as duas se saciavam ate a exaustão. Se a falta nunca seria resolvida, então so restava a elas gozar, gozar, gozar.



Era, pensava Helena, a suposição e a promessa da satisfação plena que fazia do sexo com um homem uma experiencia comum, banal. E o gozo que anuncia complementaridade, plenitude, que engana, mente, promete com o que não se pode obter - nem no sexo, nem fora dele.



Helena tinha agora lembranças. E novos desejos, que teimavam em se anunciar. Na tela do seu computador corria o diálogo alucinado dos que buscam sexo na web. Anônimos, loucos, insanos, retratos patéticos da solidão. Mas o fato e que ela também estava ai, fazia parte daquela horda de mentes e mãos
que se movimentavam por trás de um teclado.



"Vou chupar você todinha. Enfiar minha língua no teu cu" , dizia
Tesao21. Por trás deste nickname, poderia ser um homem, uma mulher, ou até um cachorro. Sabia que não era aquilo que buscava, mas matava o tempo com pornografia barata. Procurava, sonhava, desejava sentir de novo seus cinco sentidos presentes, ativos, e duvidava de que ainda fosse capaz de ter um sentido sequer vivo, presente.



Eram as mortes. Muitas mortes, simbólicas ou não, tinham lhe tomado todos os sentidos. Tinham lhe tomado a própria vida. E vivia como se estivesse anestesiada. Com a eterna sensação de que não sobreviveria. Cada sonho enterrado, cada desistência que se acumulava, agora no seu corpo, flácido, desestruturado,
fora de eixo como sua alma. Deve ter havido um tempo em que seu corpo refletia a sua boa vontade com a vida. Mas isso foi antes. Antes de sobreviver a base dos trancos que dava. Machucava o corpo ate o seu limite, abrindo espaços, varando obstáculos - reais ou imaginários, não importa - e agora doía alma e corpo. Mas seria preciso parar. Refazer-se, reinventar-se. Morrer
também para recomeçar. Havia visto tantas mortes ao seu redor. Morria um pouco a cada uma delas, recobrara as forcas para sobreviver, seguia em frente, arrastando partes de si já mortas.



Olhava agora e se via morta por inteiro, na soma de todas estas partes que morreram ao longo do trajeto. Às vezes, para se proteger, usava de tanta força que fazia vítimas em volta.


Sim, muitas das mortes em torno de si tinham sido provocadas por ela, eram vitimas da monstruosa força que fazia na luta pela sobrevivência que empreendia. Não podia se unir a fracos porque tinha medo de ser como eles. Não podia se unir aos fortes porque tinha medo de não ser como eles. Solitária, não via em torno de si nenhum tipo de amor. Amar era privilégio de quem tinha uma vida. E ela ainda precisava forjar a sua. Desconhecia o verbo amar como
desconhecia a si mesma - se não era capaz de sentir cheiro ou gosto, como sentir amor? Ainda olhava e ouvia, porque os sentidos da visão e da audição eram os que precisava para sobreviver. Não entendia como, mas havia sim uma força que brotava dela e matava outro. Sentia-se uma assassina de outros que, queridos ou não, ousavam atravessar o seu caminho. Tinha
acabado de livrar sua filha desta sua monstruosidade que era ser mãe. Espera agora, torcia mesmo, para que ela sobrevivesse. Como não matar todos os outros?



Por isso desejava de novo sentir na pele o toque de Mônica. Arrepiava o corpo todo só de lembrar. O tesão ressuscitava os movimentos, estremecia o tronco, fazia subir da vagina uma espécie de eletricidade que era impossível ignorar. Sobrava alguma vida por onde era preciso recomeçar. Seu fio condutor
era aquela noite na cama com Mônica. Se pudesse voltar a se sentir tão plena novamente, recobraria forças para todo o resto. E o resto era a vida que lhe faltava. Em poucos meses completaria 40 anos e hoje tinha consciência de que era a data que lhe empurrava o desejo de ressuscitar. Seria possível rir, sentir, gozar como quando tinha 15 anos e so acreditava na vida?



Precisava se livrar de tudo em volta, das amarras que a tinham mantido funcionando, como um paciente em coma ligado a aparelhos. Solta das amarras, renasceria? Ou morreria de vez? Oscilava diariamente nesta resposta. Acordava todos os dias se sentindo no limite, no ultimo fio de uma rede invisível.


De noite, juntava seus pedaços para ter como recomeçar no dia seguinte. A soma desses dias não era nada, rigorosamente nada que se pudesse chamar de vida. Mas agora estava viciada nesta sensação de perigo, nesta aventura permanente de sobreviver. Se fosse diferente, seria o tédio ou a morte. Síndrome de abstinência. Era assim que antevia sua vida se parasse agora e tentasse escapar do ritmo alucinado da sobrevivência. Se tivesse coragem,
voltaria ao ponto em que parou, ao lugar em que se congelou e se anestesiou, se tivesse como tocar a si mesma através de Mônica.



Mas não acreditava mais nisso. Não acreditava mais em nada nem em ninguém.



*Escritora e jornalista brasileira, editora da revista Ibis Hispanica, mora em Madrid.

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